15 dezembro, 2010

Todo resto - Martha Medeiros

         "Existe o certo, o errado e todo o resto". Esta é uma frase dita pelo ator Daniel de Oliveira vivendo Cazuza, em conversa com o pai, numa cena que, a meu ver, resume o espírito do filme dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho. Aliás, resume a vida. Certo e errado são convenções que se confirmam com meia dúzia de atitudes. Certo é ser gentil, respeitas os mais velhos, seguir uma dieta balanceada, dormir oito horas por dia, lembrar-se dos aniversários, trabalhar, estudar, casar-se e ter filhos, certo é morrer bem velho e com o dever cumprido. Errado é dar calote, rodar de ano, beber demais, fumar, se drogar, não programar um futuro decente, dar saltos sem rede. Todo mundo de acordo?
         Todo mundo teoricamente de acordo, porém a vida não é feita de teorias. E o resto? E tudo aquilo que a gente mal consegue verbalizar, de tão intenso? Desejos, impulsos, fantasias, emoções. Ora, meia dúzia de normas preestabelecidas não dão conta do recado. Impossível enquadrar o que lateja, o que arde, o que grita dentro de nós.
         Somos maduros e ao mesmo tempo infantis, por trás do nosso auto-controle há um desespero infernal. Possuímos uma criatividade insuspeita: inventamos músicas, amores e problemas, e somos curiosos, queremos espiar pelo buraco da fechadura do mundo para descobrir o que não nos contaram. Todo o resto.
         O amor é certo, o ódio é errado e o resto é uma montanha de outros sentimentos, uma solidão gigantesca, muita confusão, desassossego, saudades cortantes e necessidade de afeto que não se adaptam às regras do bom comportamento. Há bilhetes guardados no fundo das gavetas que contariam outra versão da nossa história, caso viessem a público.
         Todo o resto é o que nos assombra: as escolhas não feitas, os beijos não dados, as decisões não tomadas, os mandamento a que não obedecemos, ou a que obedecemos bem demais - a troco de que fomos tão bonzinhos?
         Há o certo, o errado e aquilo que nos dá medo, que nos atrai, que nos sufoca, que nos entorpece. O certo é ser magro, bonito, rico e educado, o errado é ser gordo, feio, pobre e analfabeto, e o resto nada tema ver com estes reducionismos: é nossa fome por ideias novas, é nosso rosto que se transforma com o tempo, são nossas cicatrizes de estimação, nossos erros e desilusões.
         Todo o resto é muito mais vasta. É nossa porra-louquice, nossa ausência de certezas, nossos silêncios inquisidores, a pureza e a inocência que se mantêm vivas dentro de nós mas que ninguém percebem só porque crescemos. A maturidade é um álibi frágil. Seguimos com uma alma de criança que finge saber direitinho tudo o que deve ser feito, mas que no fundo entende muito pouco sobre as engrenagens do mundo. Todo o resto é tudo que ninguém aplaude e ninguém vaia, porque ninguém vê.